quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Quarto Arrumado

Chuva a deixava de mau humor. Mas naquele dia, o pingar do lado de fora era só uma materialização do choro guardado, que ela escondia por imaturidade. Fato que não era toda a cidade que chorava, mas o egoísmo e a melancolia sussurravam que a chuva era toda dela naquele instante – perfeito cenário de tarde triste. Precisou olhar a pulseira pela última vez antes de junta-la aos papéis amarelados e bugigangas na caixa de papelão que ia para o lixo.

Lembrou do entrelaçar de alegria e tristeza com que recebeu aquele presente. Há cinco anos ela já sabia que teria a cena para sempre na lembrança. Mas a dor ainda não era palpável, apesar de previsível. Naquela tarde é que conseguiu entender as palavras que ouviu quando abria o embrulho: “Para que não esqueça o que tivemos”. Ela nunca esqueceria.

Quando só a distância física importava, não passava um só dia sem pensar nele e no sorriso bobo que ele a deixava toda vez que fazia um elogio. Quando à distância foi somado o tempo, a vontade de senti-lo era enorme e fazia planos para saciá-la. O desejo pela aventura tornava o planejar excitante. Quando o medo de deixar o cotidiano começou a fazer sermões sobre o imprudente, a excitação se despediu. Cinco anos depois, a chuva na janela trazia tudo isso de volta.

Nunca há de saber como teria sido. E entendeu que isso era o menos importante. A beleza sobrevivia no eterno tocar de mãos de anos atrás. Ela e ele, apaixonados, naquele tempo, eram para sempre. A intensidade estava no que foram e não no que seriam. Todo o resto é efêmero e sem valor. Guardou de volta a pulseira na gaveta. A chuva cessou.

(Karen Lessa)

domingo, 1 de novembro de 2009

Sete dias

“Não, não abram”, implorou. Mas eles se abriram. Havia certa dose de maldade nesta teimosia. Ela queria continuar a sonhar por muito mais tempo. Mas os olhos queriam o mundo. Tinham vontade própria, autonomia. E se abriram. “Traidores!”, blasfemou ela enquanto empurrava os lençóis. Odiava esta realidade constantemente nublada.

Abriu o chuveiro. Deixou a água morna cair com força no rosto. Já que era pra acordar, que acordasse logo. Quase no mesmo instante sentiu uma presença familiar. Ele nunca se atrasava, aquele pensamento insistente. Chegava antes mesmo do primeiro gole de café. Há algum tempo a acompanhava. “Inconveniente! Não, não vou ligar”, rebateu. Queria que a vontade escorresse pelo ralo junto com o fluido que deslizava pelo corpo. Demorou um pouco mais no banho. O suficiente para se convencer de que passaria o dia inteiro querendo ligar. Mais um dia. Não tinha jeito. Vestiu-se. Pegou a chave do carro e bateu a porta de casa atrás de si.

Já era noite quando voltou. Tinha passado o dia encostada no celular. Não tocou uma só vez. Por um momento chegou a ter esperanças – recebeu um torpedo. Conferiu o conteúdo. “Operadora maldita”, desabafou. Na secretária eletrônica, só um recado da mãe. “Não esqueça pegar o bolo na confeitaria”. De fato, já nem lembrava mais do aniversário da avó. Abriu a geladeira e comeu qualquer coisa. Deixou a água morna escorrer pela nuca, desta vez. Era o fim do sétimo dia de vontade. Pegou o celular, apagou o telefone dele da agenda. Adormeceu.

(Larissa Verdier)
 
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