sexta-feira, 7 de maio de 2010

Tratado de Coexistência

Não era só uma carta de amor. Aliás, nem era de amor que ela falava. Era sobre orgulho ferido, medo e alguma dose de arrependimento. Esse coquetel de sentimentos pós-namoro pode ser facilmente confundido com amor residual. Mas não era. Era pura dor-de-cotovelo. Ora, durante todo o ano em que estiveram separados, a ausência dele não a incomodava tanto, por que isso agora? Talvez porque o problema não fosse a falta, mas a presença.

Ela só percebeu que ele estava presente, que existia de fato, quando o viu com outra. Ali Rodrigo deixou de ser uma alma penada e reencarnou naquele amante. Não era mais só o ex que mandava sinais vez ou outra, na tentativa de resolver “assuntos inacabados”. Era o ex que jantava fora com a namorada nova e isso incomodava. “Deve se temer os vivos, não os mortos”.

E ela que há tanto acreditava que ele não viveria sem ela... Como comensalismo: ele foi a rêmora que precisava dos restos do tubarão Ana para sobreviver. Foi, não era mais. Ana continuava a comer, mas Rodrigo não apreciava mais as migalhas. Ele tinha a outra, a nova, a namorada, para servi-lo um banquete. Ver como ele saboreava de novo o gostinho de comida feita na hora doía muito.

Lembrou-se de quando eles provavam juntos as coisas frescas. Lembrou-se de como, com o tempo, a familiaridade com o sabor embrulhava o estômago. Foi nessa fase que Ana escolhera a separação. Precisava, desesperadamente, experimentar o novo. Mas um ano depois, quando Rodrigo estava com ela, bem ali, diante dos seus olhos, entristeceu-se. Deixou o restaurante de sempre e começou a escrever a carta.

Tentou organizar em palavras o tanto de sentimento que tinha. Não era só uma carta de amor. Era uma rendição e, ao mesmo tempo, um decreto de alforria. O necessário para que coexistissem. Colocou em um envelope, deixou com o porteiro do prédio dele no dia seguinte. Ligou para um amigo: Ana finalmente tentaria culinária japonesa essa noite.

4 comentários:

Jurema disse...

A carapuça suuupeeeeer serviu! haha! Adorei!

Unknown disse...

Nossa... genial!
Muito bem escrito e repleto de sentimento.. Ad

Dan Arrenius disse...

Adorei o texto Inteligente e honesto, massa...

Anônimo disse...

culinária japonesa????
amigo gay, fato.

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